Cidades demoram a reagir enquanto a degradação do clima se acentua
Uma atualização de dados de temperaturas em 558 cidades europeias e seus arredores, indica que 2018 foi o ano mais quente desde 1900 em 203 destas cidades. De acordo com uma pesquisa realizada pela Rede Europeia de Jornalismo de Dados juntamente com 61 autoridades locais em 6 países diferentes, a resposta de cada localidade à degradação do clima varia consideravelmente de um país para outro.
Cidades demoram a reagir enquanto a degradação do clima se acentua
Uma atualização de dados de temperaturas em 558 cidades europeias e seus arredores, indica que 2018 foi o ano mais quente desde 1900 em 203 destas cidades. De acordo com uma pesquisa realizada pela Rede Europeia de Jornalismo de Dados juntamente com 61 autoridades locais em 6 países diferentes, a resposta de cada localidade à degradação do clima varia consideravelmente de um país para outro.
Mais um ano recorde
Como seria de se esperar num mundo cada vez mais quente, vários recordes de temperatura foram ultrapassados no último ano. De acordo com dados de análise fornecidos pelo Centro Europeu de Previsões Meteorológicas a Médio Prazo (ECMWF), 2018 foi o ano mais quente desde 1900 para milhões de europeus a viver no centro do continente. Mais de duzentas cidades e seus arredores registaram temperaturas recordes, de Montpellier, no Sul da França, até Białystok, no nordeste da Polónia. Cidades ao longo do Danúbio, em torno do Mar Adriático e no centro da Itália também indicam 2018 como o ano mais quente até agora registado.
Mesmo a vaga de frio de Março de 2018, que trouxe temperaturas negativas numa grande parte do continente e neve nalgumas cidades meridionais como Roma, não foi assim tão extrema. Foi devida ao enfraquecimento do vórtice polar, uma área de baixa pressão que normalmente fica acima do Ártico e que, quando se torna instável, pode mover-se para o Sul. Foi o que aconteceu em Março de 2018 na Europa, mas também em Janeiro de 2019 nos Estados Unidos.
No entanto, estas vagas de frio interessam mais pela sua raridade do que pela sua intensidade excepcional. O gráfico interativo abaixo indica quantos episódios foram pelo menos tão frios e pelo menos tão longos quanto a semana mais fria de 2018, por década. Em quase todas as cidades, as ondas de frio tiveram mais frequência no século XX.
2019 pode assemelhar-se
Uma análise feita durante os primeiros cinco meses de 2019, realizada com a ajuda de uma outra fonte de dados, desta vez vinda do projeto European Climate Assessment & Dataset, que recolhe dados sobre as estações, mostra que os registos de 2018 podem ser superados brevemente. De janeiro até o final de maio, algumas cidades experimentaram temperaturas muito acima da média entre 1970 e 2000 (desde 1975 no caso de Lyon). Em cidades como Varsóvia, Cluj e Tallinn registaram-se temperaturas cerca de 2,5 ° C mais quentes em 2019 que pela mesma altura no final do século XX. Helsínquia, Cracóvia e Malmö passaram a marca de 2 ° C. Somente cidades espanholas como Bilbao e Palma de Mallorca experimentaram um aumento de menos de 0,5 ° C durante o primeiro trimestre de 2019 em comparação com o final do século XX.
Os dados para 2019 são apenas provisórios. A Rede Europeia de Jornalismo de Dados atualizará o projeto One Degree Warmer no início de 2020 com dados do ECMWF, o que permitirá comparações a longo prazo.
Danos devidos ao calor
As temperaturas mais altas continuam a afectar os modos de vida em todo o continente. Os invernos suaves de 2017/2018 e 2018/2019 impediram a realização de vários eventos que exigem gelo ou neve. Nos Países Baixos, o Elfstedentocht, a chamada “O tour das Onze Cidades”, uma competição de patinação no gelo que existe desde o século XVIII, não pôde decorrer (a última ocorreu em 1997).
A vida animal também está afetada. No Mar Báltico, considerado por investigadores como um caso de estudo para o futuro doutros mares e oceanos devido ao seu rápido aquecimento, o arenque tornou-se escasso. Os pescadores começaram a trazer de volta as sardinhas, um alimento básico na culinária portuguesa. Esta é uma pausa temporária, mas as perspectivas a longo prazo para o sector das pescas no mar Báltico não são encorajadoras.
Além disso, as altas temperaturas na Primavera e no Verão de 2018, juntamente com a escassez da chuva, resultaram em insucessos na Alemanha e na Polónia. O custo total foi estimado em 3,5 bilhões de euros. Invernos mais quentes também acentuam períodos de geada mais curtos. Temperaturas negativas em Abril ou Maio no leste da Alemanha e na Polónia, como aconteceu este ano, podem matar as cerejas ou as maçãs. Estas noites geladas não eram novidade no passado (os “Santos do Gelo” marcam uma data simbólica em meados de Maio correspondente ao último congelamento possível no Inverno), mas o início da floração das árvores devido ao aquecimento já em Fevereiro e Março agrava a situação.
Existem piores danos causados pelo calor.
Dezenas de europeus morreram de desidratação e insolação durante as vagas de calor de 2018, mas nenhuma autoridade sabe exatamente quantos. De facto, é provável que o número de mortes devido a vagas de calor não tenha sido pouco notificado. O EM-DAT, um banco de dados sobre desastres naturais e tecnológicos realizado pela Universidade Católica de Louvain (Bélgica), uma das poucas referências utilizadas por especialistas em previsão de desastres, contém apenas sete entradas de registos sobre ondas de calor em 2018. Destes, apenas um indica um número de vítimas (9 morreram na Espanha em Agosto do ano passado). Embora seja difícil estabelecer com exatidão a causa de uma morte, os poucos institutos de estatística que publicam dados sobre “mortes induzidas por calor” reconhecem que as ondas de calor matam muito mais do que se regista. Em Baden-Württemberg, uma região alemã com uma população de 11 milhões de pessoas, as mortes relacionadas com calor excedem 1.000 por ano, chegando a 2.000 quando as vagas de calor são particularmente fortes. Um estudo publicado em 2017 no The Lancet estima que entre 10.000 e 60.000 europeus morrem a cada ano vitimas de períodos quentes. Este estudo é, no entanto, apenas uma extrapolação baseada em tendências e dados climáticos anteriores a 2010.
A adaptação é lenta
Os espaços urbanos, onde vivem 3 em cada 4 europeus, são os principais contribuintes para a degradação do clima. O cimento e o alcatrão armazenam o calor durante o dia e expulsam-no durante a noite, causando o fenómeno chamado “ilhas de calor” : à noite, a temperatura das cidades sobe alguns graus em relação ao ambiente. Para muitas pessoas, especialmente as mais carenciadas sem acesso a equipamentos de ventilação, como o ar condicionado, as políticas locais de adaptação pelos municípios tornam-se literalmente uma questão de vida ou morte.
Algumas cidades levam o problema a sério, declarando-se em uma urgência climática: Münster, por exemplo, uma cidade de 300.000 habitantes no oeste da Alemanha, declarou-o em Maio de 2019, como Bristol durante o Outono de 2018, tal como Londres, Constance e outras cidades.
Os dados usados
Existem formas diferentes de medir a temperatura. A maioria dos registos relatam a temperatura máxima diária (geralmente medida a dois metros do solo), pois permite-nos decidir como vestir. Outros, como os agricultores, podem preferir leituras de temperatura do solo. A EDJNet utiliza a temperatura média diária, que é uma leitura da temperatura média à meia-noite, às 6h, ao meio-dia e às 18h.
Existem também várias fontes de dados de temperatura. A temperatura atual, por exemplo, exibida por um Smartphone clássico, vem geralmente de estações meteorológicas. No entanto, esses dados não podem ser usados para análises a longo prazo. As estações não existiam em 1900, e mesmo se existissem, poderiam ter mudado de sítio, ou mesmo o microclima onde estão localizadas pode ter mudado (algumas estações com trabalho de campo têm dados concretos), tornando tendências mais difíceis de seguir. Por estas razões, a EDJNet utiliza os chamados dados de “reanálise” fornecidos pelo ECMWF. Esses dados incluem várias fontes, incluindo medidas de estação e de satélites e balões meteorológicos. Os dados da primeira metade do século XX são reconstruídos via modelos climáticos e dados históricos das estações.
As reanálises provém da previsão meteorológica. Geert Jan van Oldenborgh, pesquisador em climatologia do Royal Netherlands Meteorological Institute e director do Climate Explorer (uma coleção de conjuntos de dados meteorológicos) explica numa entrevista por e-mail que a reanálise serve para fornecer “o melhor estado inicial para começar uma previsão”. À medida que os padrões climáticos melhoram, faz sentido “usar observações passadas para obter a melhor descrição possível do tempo que fez no passado”. No entanto, van Oldenborgh acrescenta que a fiabilidade da reanálise é variável : às vezes é melhor do que os dados de estações para países inteiros, como a Índia, mas podem facilmente escapar às temperaturas extremas do inverno em altas latitudes.
Os dados do ECMWF estão disponíveis para todo a gente, mas a resolução é limitada a perímetros com cerca de 80 km de largura. Para cidades baixas, próximas de áreas montanhosas, podem haver várias diferenças de graus entre as leituras de temperatura do ECMWF e a temperatura real, mas a tendência de aquecimento é geralmente a mesma, seja ela de dados de reanálise ou dados de estação. Esta abordagem, no entanto, deve ser feita com cautela para as cidades costeiras, onde o mar aquece mais rápido que a terra. Este fenómeno ocorre principalmente no Mar Báltico, onde as taxas de aquecimento reportadas pela EDJNet são geralmente superiores às obtidas a partir dos dados das estações.
Embora as declarações de urgência climática sejam demasiado recentes para serem avaliadas, muitos programas também tentaram resolver o problema desde pelo menos meados da década de 2000. Quinze cidades da União Europeia têm ou planeiam um “Chief Resilience Officer” (CRO), que se inclui no programa “100 Cidades Resilientes”, financiado pela Fundação Rockefeller (que se encarga com as despesas salariais do CRO durante dois anos).
Paris , por exemplo, onde se registou em 2018 uma temperatura de 2 ° C acima da média do século XX, o CRO propôs uma reforma para os cursos de 700 escolas da cidade no intuito de limitar os picos de calor. A capital também planeia transformar a via circular periférica numa avenida como as outras.
À luz dos esforços demonstrados no passado, pode-se perguntar até que ponto estes programas são sustentáveis. Uma pesquisa realizada em 61 cidades de seis países diferentes pela Rede Europeia de Jornalismo de Dados mostrou que as estratégias de enfrentamento são, na melhor das hipóteses, desiguais.
Lisboa , que também faz parte das “100 Cidades Resilientes” da Fundação Rockefeller, forneceu diversos detalhes sobre a sua estratégia de adaptação às mudanças climáticas (EMAAC), um plano desenvolvido pelo governo local como parte integrante do projeto ClimAdaPT, uma iniciativa financiada por 1,5 milhões de euros pelo Espaço Económico Europeu.
La Spezia, uma cidade de 90.000 habitantes no oeste da Itália, onde o ano de 2018 era quase 2 ° C mais quente que a média do século XX, indica que parte da estratégia foi tornar-se membro da Mayor Adapt, uma rede de administrações locais criada pela Comissão Europeia. No entanto, este programa deixou de existir em 2015 (o programa que lhe sucede chama-se Covenant of Mayors).
Noutras cidades, a ligação entre os programas oficiais e as consequências concretas é fraca.
De 2008 a 2014, o governo alemão apoiou projetos-pilotos no âmbito do programa “Klimzug” para ajudar sete regiões a desenvolver planos com o objectivo de se adaptarem à degradação do clima. Dresden, uma cidade de 800.000 habitantes na Alemanha Oriental, onde o ano de 2018 foi 2.5 ° C mais quente do que a média do século XX, respondeu à pesquisa da EDJNet mencionando o plano Klimzug (com o nome de Regklam), que parece estar a ser acompanhado e implementado. Outra cidade que beneficiou de um projeto-piloto de Klimzug é Rostock (200 000 habitantes, na costa do Báltico). A administração local respondeu à nossa pesquisa sem mencionar mais uma vez qual a sua estratégia Klimzug, chamada Radost. Ironicamente, embora a administração local tenha respondido à pesquisa dizendo que Rostock tinha beneficiado das temperaturas mais altas, uma vaga de calor atingiu a cidade algumas semanas após as respostas terem sido enviadas. As autoridades revelaram então a imprensa local que estavam “muito mal preparados” para responder a tais eventos. É interessante notar que, com o programa Radost, Rostock comprometeu-se a projectar um plano de atenuação de vagas de calor. Foi em 2014.
“Só nos ocupamos das urgências”
No âmbito da pesquisa da EDJNet, as autoridades municipais foram questionadas sobre os estudos realizados para avaliação das consequências das altas temperaturas na população.
Representantes de Skövde, uma cidade de 30.000 habitantes no centro-sul da Suécia, onde o ano de 2018 foi 2 ° C mais quente que no século XX, explicam abertamente por que na cidade ainda não avaliaram o impacto da degradação do clima na população : os políticos “geralmente têm outras prioridades, como o crescimento económico, de forma que a adaptação ao clima não recebe a mesma atenção. A política partidária nem sempre caminha na mesma direção que os resultados científicos.” Acrescentam, no entanto, que um estudo está a ser realizado.
Para além disso, a administração de Belluno, uma cidade de 35.000 habitantes no norte da Itália, onde a temperatura em 2018 foi superior de 1,7 ° C acima da média do século XX, disse que o aumento das temperaturas não foi um problema, acrescentando que não haviam realizado estudos sobre o assunto, apenas vigiado mosquitos e pulgas.
Esta falta de avaliação sistemática é problemática. Na maioria dos países, as cidades precisam desenvolver planos ou estratégias de adaptação, como os “planos de ação para uma energia sustentável e climática” (Paesc) na Itália, ou o “plano climático local para uma energia aérea e territorial”(Pcaet) na França. O facto de tão poucas cidades terem conduzido estudos rigorosos sobre os efeitos do aumento da temperatura reforça a afirmação vinda dos responsáveis por Skövde de que esses planos são provavelmente dominados por preocupações políticas, e não por conclusões científicas.
Finalmente, em Treviso, uma cidade de 85.000 habitantes no norte da Itália, os estudos foram realizados, mas fazem parte de iniciativas pessoais. “Obviamente, o problema agora é sério, mas ainda não foi entendido pelas instituições da gravidade”, disse um funcionário municipal. A administração municipal resume o problema explicando que “se ocupa apenas das urgências… que a cada dia são mais frequentes!” Uma declaração sincera que, apesar do acumular de relatórios sobre a adaptação, poderia aplicar-se a Rostock e a centenas de outras cidades europeias.