Acesso ao aborto não está garantido mesmo nos países onde é legal
Em vários países europeus não são necessárias leis contra o aborto, devido a falta de ginecologistas disponíveis, o que torna a interrupção de gravidez quase impossível.
Acesso ao aborto não está garantido mesmo nos países onde é legal
Em vários países europeus não são necessárias leis contra o aborto, devido a falta de ginecologistas disponíveis, o que torna a interrupção de gravidez quase impossível.
A 25 de maio realizou-se um referendo na Irlanda, com o objetivo de pedir aos eleitores se eles queriam ou não revogar a oitava alteração da Constituição irlandesa que garante o direito legal de vida do feto e da mãe e que impede o aborto em quase todos os casos. O “Sim” obteve 66,4%. A legislação antiaborto deste país é uma das mais duras do mundo.
Mas uma lei restritiva não é sempre necessária para limitar o acesso ao aborto. Nalguns países onde o aborto foi legalizado as mulheres encontram dificuldades para ter acesso a ele, por caso da indisponibilidade de ginecologistas que não sejam objetores de consciência.
É o caso na Itália que é um dos países que mantêm um registo com o nome dos médicos que se opõem a IVG. Na Itália, o aborto gratuito e feito em boas condições é garantido por lei desde 1978 mas o acesso ao aborto foi limitado nos últimos vinte anos, com um aumento de 12,9% dos médicos que recusam efetuar abortos por razões éticas. Segundo os dados fornecidos pelo Ministério italiano da saúde, este valor era de 62,8% em 1997, data do princípio das medidas, e de 70,9% em 2016, o que representa a percentagem registada mais elevada de sempre.
Os dados regionais mostram picos ainda mais elevados. Ao longo dos anos, a situação deteriorou-se no Sul e nas ilhas, o que teve um impacto negativo sobre a tendência nacional. Esta tendência foi também observada na Itália central. Apesar do bom desempenho nas regiões ditas « vermelhas » (Toscana e Emília-Romanha), os péssimos resultados do Lácio (região de Roma) com 78,8% de objetores de consciência em 2016, baixou a taxa de acesso ao aborto.
Itália do norte é a única zona onde a percentagem de objetores de consciência diminui. Mas em 2016, último ano para o qual os dados estão disponíveis, mesmo a Lombardia e o Piemonte, as duas regiões mais ricas e com o melhor sistema de saúde da Itália, conheceram um aumento do número de objetores de consciência.
A interrupção voluntária de gravidez só é efetuada em menos de 60% dos hospitais do país. Muitas vezes, as mulheres são obrigadas a deslocarem-se para outras cidades ou regiões, ou mesmo para o estrangeiro onde podem aceder ao serviço de saúde garantido por lei. Giulia (cuja identidade foi alterada em razão do assédio mediático) arriscou ultrapassar o prazo máximo de 13 semanas previstas para os abortos autorizados porque os hospitais nos quais ela quis ser tratada, na região do Vêneto e nas regiões limítrofes, recusaram-lhe o acesso por caso da falta de funcionários favoráveis ao aborto : « em casos como este, ou lida com a situação ou bate no muro e eles destroem-vos. Você sente-se frágil, desorientada e não controla bem as coisas » diz ela.
Uma consulta no limite do prazo legal só lhe foi concedida depois de ela ter contactado um sindicato que tinha feito campanha em favor do direito ao aborto.
O caso foi debatido nos médias locais e no concelho municipal onde lhe chamaram irresponsável e egoísta. « Foi a confirmação do facto que quando você tenta esconder algo que não funciona, a melhor forma é de atacar e denegrir as outras pessoas » segundo Giulia.
A presença da Igreja e duma mentalidade conservadora no Ministério da saúde, sobre uma temática que é, ainda hoje, tabu não pode explicar tudo. O problema é de natureza institucional, segundo a ginecologista Sailvana Gato que exerce em Roma : « Aquele que não se opõe ao aborto é visto como um criminal e não como um médico comprometido. Os que não são objetores de consciência podem ser maltratados sem ninguém que os ajude e a sociedade descarrega a raiva neles ».
É também a posição do Concelho da Europa que tem como objetivo fazer respeitar as convenções europeias dos Direitos humanos. A organização salientou, pela segunda vez em cinco anos, que « as mulheres que desejam aceder aos serviços de aborto eram sempre confrontadas com importante dificuldades para obter acesso aos ditos serviços » e que a minoria dos funcionários que não são objetores (médicos, obstétricos, anestesistas) também são « confrontados a discriminação direta e indireta no local de trabalho, em termos de carga de trabalho, de repartição das tarefas e de desenvolvimento das oportunidades de carreira ».
Nalgumas regiões onde prestam serviço as mulheres que vêm de cidades ou regiões vizinhas onde não têm acesso ao aborto, cada médico, se não é objetor de consciência, deve efetuar um número recorde de interrupções de gravidez por semana, para tapar o vazio da prestação de serviço das outras regiões. É o caso de Tarento na região de Apúlia onde cada médico procedeu, em média, a 15,8 abortos por semana, por ser uma região onde 86% dos médicos são objetores de consciência. Em Catânia, na Sicília, os médicos que não se opõem ao aborto e que só representam 15% dos ginecologistas da região, são obrigados a praticar 12,2 abortos por semana.
« A lei enfraqueceu ao longo dos anos e as condenações do Concelho da Europa não são ouvidas, de tal forma que parece que não foram bem divulgadas » declara Loredana Taddei da Confederação geral italiana do trabalho (CGIT), o primeiro sindicato do país.
A Ministra da saúde Beatrice Lorenzin declarou em 2016 que a objeção de consciência não era verdadeiramente um problema porque o número total de abortos diminui. E, com efeito, o número total de abortos baixou de 17% desde 2010, sobretudo graças a pílula abortiva que pode ser tomada quase 5 dias depois da relação e que está disponível nas farmácias desde 2015.
Mas segundo as estatísticas os « abortos espontâneos » aumentaram, como também os abortos clandestinos. A CGIT avalia-os a 50 000 por ano enquanto o governo avalia-os a 12 000 – 15 000 para as italianas e entre 3000 e 5000 para as estrangeiras.
Como os abortos ilegais são punidos com multas elevadas e que aumentaram até 10 000 € em 2016, muitas das mulheres que se encontram nestas situações de vulnerabilidade têm medo de ir ao hospital depois de ter sofrido um aborto ilegal, mesmo quando se encontram numa situação de emergência e que arriscam a vida delas. O aborto é muito frequente nas mulheres migrantes com 33% do total das IVG em 2014.
« Umas chegam nas salas de emergência com febre, com abortos inacabados e outras estão quase a morrer. Não estávamos habituados a ver isso antes, nem há 5 anos. E há sempre mais estrangeiras neste caso » diz Agatone.
A objeção de consciência na Europa
A Itália é o único país europeu que regista os dados ligados a objeção de consciência mas a situação também é insatisfatória.
Segundo as pesquisas, recorrer a objeção de consciência e é um direito autorizado pela lei de 21 países da UE, como também pelo regulamento norueguês e suíço. Recusar de efetuar um aborto por razões morais não é permitido pelas legislações dos estados membros da UE seguintes : Suécia, Finlândia, Bulgária, Republica checa e Islândia.
Mesmo em certos países europeus que legalizaram o aborto sob pressão, as mulheres ainda são confrontadas com muitas dificuldades para ter acesso a um tratamento seguro. Alguns Estados membros não conseguiram adotar um sistema de regulamento adequado e medidas de aplicação para assegurar, na prática, o acesso das mulheres aos serviços de aborto legais quando os profissionais medicais recusam fazer tratamentos invocando casos de consciência », como indica um relatório do Concelho da Europa realizado em 2017.
Na Polónia, por exemplo, as mulheres « são sistematicamente confrontadas a recusas repetidas quando tentam aceder aos serviços legais de aborto » indica o relatório. « O que constatamos na Polónia é que o quadro jurídico existente não funciona corretamente na prática. O efeito da criminalização cria um ambiente onde os tratamentos tornaram-se inacessíveis » declara Katrine Thomasen, pesquisadora na ONG Center for Reproductive Rights.
As alterações propostas relativamente a lei sobre o aborto, que já é uma das mais restritivas da Europa porque só autoriza a interrupção de gravidez em caso de violação, para salvar a vida da mãe ou se o feto apresenta malformações pré-natais, tentando tornar o aborto ilegal mesmo quando as ecografias mostram malformações.
Na Hungria, a reforma constitucional de 2011 protege a vida do feto a partir da sua conceção. Em 2013, o país foi criticado pelo Concelho da Europa por limitar o acesso ao aborto, tendo em conta o incidência crescente da objeção de consciência e da estigmatização do aborto. A organização exigiu do governo húngaro que assegurasse, mesmo se a objeção de consciência continua lícita, que as mulheres fossem dirigidas para médicos em exercício e que nenhum hospital pudesse ter uma política que tornasse o aborto impossível.
«Entendemos a inquietação de alguns países europeus relativamente a recusa de tratamentos e ao fracasso dos Estados em assegurar, na prática, o acesso aos serviços de aborto », conclui Thomasen. « É mesmo uma preocupação chave. »